PITA FOGO BARRETOS

PITA FOGO BARRETOS

domingo, 28 de março de 2010

Deu a louca na mãe

--“Ah! Eu não agüento! Acho que vou ter um troço...”, desabafa a mulher. E teve mesmo. Gritaria, histerismo, espasmos, sintomas de desequilíbrio mental e loucura, se confundiam. E o corpo feminino, maltratado e acabado, contorcia numa cena dantesca de chamar a atenção da vizinhança. “Liga pra polícia”, sugeriu um. “Chame a ambulância”, dizia outro. “O Mariano Dias é a única solução”, diagnosticava alguém.

Lida doméstica não é fácil. Para muitos parece vida de “mandruvá” – dormir... acordar... comer... beber...cagá... dormir... – mas, não é bem assim, principalmente em uma casa na qual a gurizada reina. O coração de mãe, por mais acolhedor e amoroso que possa parecer, está sujeito a explodir a qualquer momento. Sintoma do stress doméstico.

Maria de Jesus, quarentona, desconhece a monotonia da vida de casada. Os áureos momentos da juventude são recordações. Esvaziaram-se os sonhos de eterna felicidade quando pronunciou o “sim” diante do altar da Igreja Matriz, num compromisso de fidelidade ao amado Pafúncio. As delícias da vida a dois transformaram com a chegada do primogênito. Depois veio o segundo. Em seguida, o terceiro... quarto... quinto... sexto... (e não adiantava televisão!)... sétimo... oitavo. Quando a escadinha projetava-se para o livro dos recordes, a produção parou. Afinal, o salário do marido era pequenino para tanto filho. Oito... Quem diria!...

Agüentar a gritaria da filharada não era mole: “Manheeeê!... Eu quero mamá, manheeeê!...” Paciente, Maria de Jesus, respondia: “Espera um pouquinho só, meu filho!” Ao passar os anos, o barulho era ensurdecedor: “Manhê! A comida tá pronta?, perguntava um. “Manheeeê!... A professora de português me deu zero na prova!”, contava outro. “Manheeeê!... A senhora passou minha roupa?... Me dá um dinheiro?... Deixa ir na boate, hoje à noite?... O espelho do quarto quebrou sozinho!... Costura minha calça?... O Alfredinho puxou meu cabelo!... A senhora deixa eu fumar?... O Marcelo me deu um cóqui!... Cadê minha cueca?... Tem passe pro circular?...” As indagações e afirmações sucediam numa velocidade impressionante: “Manheeeê!... Manheeeê!.... Manheeeê!... Manheeeê!...”

Veio a crise. Que flagelo. Debilidade mental à vista. Tratamento à prazo. E numa camisa de força, desfalecida, Maria de Jesus seguiu numa ambulância, sentindo o prazer de ser a rainha do lar.





* l.º lugar na categoria geral do 3.º Concurso de Textos Uniart “Prêmio Ruy Menezes” ( 1990)

quarta-feira, 24 de março de 2010

Lá onde o vento encosta o cisco

Anoitece no povoado de Itambé, outrora Passa Tempo. Na venda do Paixão, apeia o Zé de Niquinha, um domador de cavalos afamado na redondeza. Amarra num pau o burrão Corisco. Está com a goela seca. Quer tirar a poeira do estradão. Degustar algumas cervejas Hamburguesas, bater papo com os amigos e depois, prosseguir viagem. Afinal de contas, tem compromisso assumido junto com os companheiros Antônio Catulé. Leodoro e Bruno Novato. No dia seguinte, um comissário espera-os no ponto de pouso Açoita Cavalo. Uma nova empreitada aguarda-os.

No fim da noitada, Zé de Niquinha decide ir embora. Recusa pouso na vila. Contorna a cadeia e resolve passar pareado com o cemitério. O burro vai trotando. De repente, o bicho nega. Não quer continuar a jornada. Empaca. Dá para trás. Refuga. Vira aquele trem. Calmo, o cavaleiro olha para frente e vê um negócio branco, balançando, Vai de um lado para o outro. Uma brisa suave refresca a noite de lua minguante. Fica intrigado. É assombração? Alma penada? Burra-do-padre? Coisa do outro mundo? Enfim, enche de coragem e balbucia.

-- “Eu vou lá ver o que é isso”.

Amarra o burro pelo cabresto numa árvore. Vai se aproximando. Devagar. Cuidadoso. Ao chegar bem pertinho, constata: é a flor do capim “favorita” que balouçava. Passa o pé em cima. Sorri. “É a coisa”, pensa. Depois, retorna, desamarra o burro, toca em frente, dando seqüência à viagem.

No Açoita Cavalo, o comissário o espera. Contrata-o para tocar boi na estrada. Enquanto a peonada aguarda, Décinho é encarregado de domesticar uma tropa de burros. São trinta animais. Muares perigosos. Ideais para o peão que gosta de mostrar suas habilidades na montaria. O comissário manda Leodoro, Aleixo e Zé de Niquinha cortar frieira, isto é, tirar uma carne esponjosa no casco do boi com a faca e tratar. Medicado, o animal adquire condições para viajar.

Enquanto realizam o trabalho, espiam o montador em sua missão. De repente, o rapaz afunda numa “bassoura” que dá medo. Monta uma, duas, três vezes e cai. O capataz Euzébio, grita:

-- “Olha criatura! Tenha paciência! Tira os arreios do burro! Não ponha mais não! Você desse jeito põe meu burro perdido. Depois, peão nenhum monta! Pois aí ele quer só derrubar”.

Ao ver a cena, Antônio Catulé, um dos peões ali arranchados, que conhece a fama de Zé de Niquinha, procura o comissário e confidência o talento do companheiro. E acrescenta:

-- “Olha, não sei se ele vai aceitar o encargo, mas garanto que é peão bom, isso é!”

-- “É bom mesmo”, pergunta o comissário.

-- “É bom toda vida”, confirma Catulé.

-- “Então vou adular ele”, diz o comissário.

O comissário chega onde está Zé de Niquinha. Oferece um cigarro Fulgor para começar a prosa. A certa altura da conversa, diz:

-- “Eu escutei um negócio ali, que me interessou muito. Antônio Catulé afirma que você é bão peão”.

-- “Sou nada! Eu sou peão de égua. Amanso égua, cavalo, mas burro, não!”, retruca Zé de Niquinha.

O comissário insiste:

-- “Ah! Você amansa sim. Está querendo sair de mim. Mas vou fazer uma proposta que você não vai agüentar!”

Rebate Niquinha: -- “Vamos ver a proposta, uai!”

Então ele fez a oferta: -- “despesa que você fizer na estrada... Se você quiser ir prá zona, gastar à vontade, pode gastar. Se quiser ir numa festa por aí, vai. Tudo o que torrar na estrada não vai ser marcado”.

E completa: --“Essa turma ganha cinco conto e você vai ganhar dez!”

Diante das vantagens, Zé de Niquinha decide “fincar a unha”. Agarrar com força a oportunidade.

E despacha: -- “Ah! Eu vou!” E vai.

Realizado o acordo, é hora de reunir os burros. O comissário pergunta.

-- “Zé! Você quer começar com a mulinha? Ela já derrubou o Jesus três vezes?!?”

Responde Zé de Niquinha:

-- “Não! Deixa essa mulinha!”

Jesus intervém:

--“Óia Zé! A mulinha pula muito!”

Zé de Niquinha retruca:

-- “Não. Eu quero começar com o que pula mesmo!”

O comissário então fala:

-- “Então você pega esse burro amarelo. É bão prá rodeio. O bicho e a mula tordilha já derrubaram muita gente. O burro chama Nervoso e a mula Picadinha. Você pode pegar qualquer um dos dois que vai achar pro seu pé!”

Zé de Niquinha já está acostumado a montar no pelo. Pego o burro Nervoso. Leva-o para o pau. Dois companheiros querem ajudar segurar o animal. O amansador recusa o oferecimento. Coloca o arreio. Aperta bem as correias. Agarra nas orelhas com o abridão e torce. O quadrúpede fica quietinho. Tranqüilo. O peão soca o dedo no olho do “amarelo” para ele não ver. Ele fica imóvel. Em seguida, monta. Arruma. Apruma. Cutuca. O bicho não pula. Sai marchando. Dá umas voltas.

Admirado, o comissário comenta:

-- “O burro não pulou. Mas ele pula muito”.

Aos 27 anos de idade, estatura mediana, cabelos pretos, barba por fazer, moreno, Zé de Niquinha é experiente na doma. Não considera o trabalho difícil. Além da coragem, o peão tem truques e sutilezas ao fazer as coisas. Nunca permite que alguém possa ajudá-lo.

-- “É pior!”, declara.

--“Ninguém faz o serviço da maneira como deve ser feito”, argumenta. Jamais esquece de colocar as barrigueiras apartadas, uma longe da outra, bem firme, “torando”.

O domador sabe que um burro brioso é aquele que o peão ralha e ele coloca o rabo no meio das pernas. Ou então monta e dá uma tacada. Na próxima batida, o animal já está com o rabo lá no umbigo. Ao ser domesticado, caso balance o rabo, tem tendência para rodeio. Utilizado na lida campestre não tem tanta eficiência.

Zé de Niquinha lembra que certa ocasião integra uma comitiva que vai buscar em Coxim, Mato Grosso, 1.300 bovinos destinados ao abate no Frigorífico Anglo. Conforme o contrato são primeiramente conduzidos à engorda nas invernadas do Zéquinha Amêndola. Os animais são bravos. Tem que repassar a boiada durante três dias. Ensiná-la a viajar. Tocam a manada na estrada, dentro da fazenda. A peóla estala. O relho comprido “educa” os ruminantes para o trajeto. Enquanto isso, três peões retalham a carne, salgando-a para o cozinheiro. Umas “baitas” mantas.

Ao deixar o lugar, entram num colchete para fazer boi. Os cavaleiros afunilam os animais para a contagem. Quando o serviço está no fim, um peão que bate nos bois, solta a capa na cabeça do burro que Zé de Niquinha monta. O animal assusta. E começa a pular. Desembesta pasto a dentro. O peão alça vôo. A cada pinote enxerga a boiada por cima. Os pulos continuam. Os impactos são violentos. Então o capataz berra:

-- “Ô Zé de Niquinha, vira as argolas!”

O peão obedece. Vira o relho para o lado das argolas. A taca não dói. As argolas doem demais. E manda as três argolas na orelha dele. Bate na cara. Tenta contê-lo. A disputa continua. O montara não se subjuga.

Passado algum tempo, o burro pára. Contém-se. Começa a trotar. Sai andando normalmente.

A viagem começa. O capataz caprichoso, quando depara com um capão de mato no meio do campo, avisa o ponteiro para dar um esbarro na boiada. A atitude é para proporcionar aos animais um pouco de alimento.

A certa altura da jornada, num ponto de pouso, o capataz bate nas costas do arribador e diz:

-- “Eh! Zé de Niquinha. Faltam dois”.

-- “Faltam dois?”, indaga.

-- “Faltam”, confirma.

Zé de Niquinha vira prá trás. O capataz ainda grita:

-- “Oh! Zé! Vem comer um pedaço de queijo com marmelada”.

Não atende ao convite. Peão prático, já sabe onde pode estar a arribada. No esbarro. Quando chega lá, depara com um boi. O outro não encontra. Procura por toda a parte. Não acha. Balbucia: “agora danou-se”.

Tenta encontrar o fugitivo até o sol entrar. Não consegue. Então, resolve tocar o perdido até o ponto de pouso. Quando chega, até sua rede está armada. O capataz já vem justificando. A peonada goza: “O homem engoliu a lua”. Falta somente uma cabeça. O boi está entregue. Contudo, quando o arribador não encontra o sumido, os outros peões mangam: -- “você sabe arribar só a tampa da panela, siô!”

Os dias passam. A viagem acaba. Chegam a Barretos. Cumprem a tarefa. A peonada trata de arrumar uma pensão. Abrigo ajeitado e bucho cheio, hora de farrear. Os burros soltos. O caminho é o famoso Café Goiano. Cachaça, mulheres e jogo, formam um triângulo perigoso. Brigas, encrencas, confusões. O peão adestrado na estrada é tinhoso. Provocador. De repente, trança no tapa, coloca o adversário no chão e o rolo está feito. Até quem não tem nada com o caso entra na confusão. O pau quebra. Mas sempre aparece peão que é desconfiado. Sujo na cidade. Foge da polícia e guarda para o meio do arranha-gato e gravatás periféricos. Ninguém acha.

Longe do ambiente de perdição, Zé de Niquinha trabalha. Uma vez monta o cavalo Violento. Está caçando nove bois numa invernada. São nove peões. No final da tarde, acham um boi. Só um. Partem para cima dele. É um pega prá capar. O bicho é arisco. Escapa. Quando se sente acuado, salta no meio dos perseguidores. O destemido domador cutuca o Violento e sai no encalço do fugitivo. Pensa: -- “Vou puxar o rabo, pulo no chão e pego ele”.

Entram numa galhada de sucupira. O boi pula. O cavalo pula também. Mas cai num “murundum” que tem na frente. Quando ele afunda, Zé de Niquinha salta. Sai fora. Cai. Assustado, olha no toco da árvore que se encontra caída. Sente um suorzinho frio no rosto. Passa a mão achando que o melado escorre. A cabeça arrebentara. Quando olha, suspira aliviado. Não é sangue. É somente suor. O animal permanece caído. O peão quer amarrar o equino. Ao chegar perto, nota que Violento está morto. Na queda, quebrara o pescoço.

Ao ver a cena, o capataz desabafa:

-- “Esta é a hora do patrão estar aqui para ver o risco que a gente corre. Você poderia ter morrido no lugar do cavalo”.

As aventuras e peripécias dos peões são infindáveis. Apesar de sofrida, gostam da profissão. Alguns inclusive acham que deve haver um lugar apropriado para que possam reunir a peonada para se divertir. Uma festa grande. Animada. Enquanto isso não acontece, Zé de Niquinha retorna ao estradão. Vagando por esse mundão de Deus. Recantos longínquos. Onde o vendo encosta o cisco.

Na terra dos Barreto é inverno de 1946...







* 1.º lugar no II Concurso de Contos “Prêmio Barretos Country” da Secretaria Municipal de Cultura (Barretos – SP) – agosto de 1999 - (Pseudônimo: Filisbino Tibúrcio).